domingo, 12 de julho de 2009

Pina Bausch: um festival de dança-teatro


"O mais importante é a vida. O que importa é partilharmos o que estamos a sentir, aquilo de que temos medo, o que desejamos." É desta matéria que se fazem as criações de Pina Bausch. É esta identidade singular que podemos revisitar novamente, em Lisboa, no Teatro São Luiz e no CCB.


Cláudia Galhós   

15:47 Terça-feira, 30 de Jun de 2009 




foto: Luiz Carvalho 


Faz dez anos que Pina Bausch esteve em residência artística em Lisboa, com a sua companhia, Tanztheater Wuppertal, para criar Masurca Fogo. António Mega Ferreira, agora presidente do CCB, era então comissário executivo da Expo-98, que encomendou a obra. Mas a relação com a cidade é mais antiga. Tem sido duradoura. Em 1994, por ocasião de Lisboa, Capital Europeia da Cultura, Jorge Salavisa (hoje director do Teatro São Luiz) era programador de dança. Foi ele quem trouxe, nesse ano, peças emblemáticas da coreógrafa alemã. Constam, entre elas, A Sagração da Primavera, Café Müller, Kontakthof, Viktor e 1980. Agora, em programação partilhada, o CCB e o São Luiz apresentam "2008, Um Festival Pina Bausch", com espectáculos, filmes e conversas, para conhecer mais a fundo esta história de amor de Pina Bausch com Lisboa, através de algumas das peças de referência do seu repertório. O "Expresso" conversou com a coreógrafa.


Disse, numa entrevista, que o impulso para coreografar nasceu da frustração de querer algo para dançar. Foi assim que começou?

No início, não tinha esse impulso para coreografar. Sempre fizemos dança, na escola. E a primeira vez que criei foi porque queria dançar, porque sentia algo forte que queria expressar. As pessoas diziam-me que ficasse pelas peças. E fiz uma pequena, para mim, e uma segunda também. A criação aconteceu sempre porque precisava muito de me expressar, não pensava que queria ser coreógrafa. E mesmo quando Kurt Joos coreógrafo alemão me convidou para assumir a coreografia e tomar conta da companhia de Folkwang, em Essen, eu não queria ir para o teatro. Não queria ir para um teatro. Gostava de trabalhar livremente. Só muito mais tarde é que isso aconteceu.



foto: Francesco Carbone 



Celebra 40 anos de coreografia - 1968 regista a sua primeira criação para o Folkwang Ballet, com música de Béla Bartók, "Fragment". A análise do seu trabalho identifica habitualmente diferentes períodos. Por exemplo, a década de 80 é normalmente vista como tendo estado mais focada no mundo, no medo da violência e num certo olhar de desastre... Concorda?
Tudo o que fiz antes de vir para Wuppertal dirige a companhia a partir de 1973 era muito diferente, peças muito distintas umas das outras. Não era tanto por querer mudar algo, acontecia normalmente. Sempre trabalhei os temas que sentia que precisava trabalhar, com os quais precisava de me ocupar. Num mesmo ano, tenho peças muito distintas. Por exemplo, em 1974, fiz Fritz, sobre um rapaz que via tudo em seu redor - os pais, os avós - como figuras estranhas, de uma forma muito complicada. E no mesmo ano fiz uma dança-ópera, Ifigénia em Táuris, de Christoph Glück. Depois, fiz uma obra com música de Gustav Mahler, em que as bailarinas, as raparigas, cantavam, cada uma, uma pequena canção. Foi uma peça que, novamente, resultou em alguma estranheza e que era muito diferente do que tinha feito antes. Por isso, não consigo olhar para uma fase como um período ou um estilo, porque, numa sequência de peças, elas são muito distintas umas das outras. Uma mais séria, outra mais leve... Quando olho para os trabalhos, vejo grandes ondas, algumas coisas vêm, surgem, o ambiente muda...


Mas essa fase inicial foi complicada. Tinha o público revoltado, porque queria continuar a ver bailado clássico, que a companhia fazia em Wuppertal, enquanto afirmava a sua identidade pessoal... Como é que recorda esse período?
Antes de ir para Wuppertal, o director convidou-me para colaborar. Fiz trabalhos que tiveram óptimas reacções e convidaram-me para a companhia. Eu não queria entrar numa rotina, mas o director não parava de me convidar. Houve um momento em que aceitei. Disse-lhe: "OK, posso tentar." Mas tinha medo, porque tinha pouca experiência de trabalhar com tanta gente. Tinha sempre trabalhado com grupos pequenos, com mais tempo. E depois havia ali uma companhia clássica e um público e uma cidade que gostavam muito da companhia. Por isso, foi um choque. Eles foram confrontados com algo muito diferente, de que não gostavam nada. Foi um período muito duro. Os primeiros anos foram muito difíceis. Acho que, desde o início, houve um mal-entendido. As pessoas achavam que eu queria provocar. Eu nunca quis provocar, estava apenas a tentar fazer o melhor que conseguia, sentia necessidade de expressar algo e tentava dizer isso através da dança, algo de bom.


Há a opinião de que a sua identidade como artista surge em meados da década de 1970, com peças que juntavam a música de Kurt Weill e os textos de Bertolt Brecht, como "The Seven Deadly Sins" (1976). É possível, hoje, dizer qual é a herança que deixa relativamente à transformação da dança?
Estive sempre tão ocupada a trabalhar que não tinha consciência do que significava o que fazia. Nem tinha oportunidade de ver outras coisas. De qualquer modo, quando estou a fazer um trabalho, nunca vejo o que os outros estão a fazer, porque isso significa que é algo que já está feito, e eu preciso é de encontrar a minha própria maneira de o fazer, a minha própria forma. Em todo o caso, para mim, o que é mais importante é a vida. O que importa é partilharmos o que estamos a sentir, aquilo de que temos medo, o que desejamos. Isto é o mais importante. Não tanto no sentido privado, pessoal, individual, mas sim no de todos nós, no sentido colectivo. Se cada um for ao fundo dos seus sentimentos, acredito que há uma linguagem que todos partilhamos, que todos falamos e na qual todos nos entendemos e nos encontramos. É dança, é movimento, mas é também tudo o que nos ajuda a expressar melhor aquilo que nos move.


As peças que traz a Lisboa, ao festival, são muito diferentes - "Café Müller" (1978), "Masurca Fogo" (1998) e "Nefés" (2003). O que é que significa para si cada uma delas?
Devo dizer que estou muito feliz por sermos novamente convidados a apresentar Masurca Fogo. Esta é uma peça que representa um tempo inesquecível e importante, que passámos em Lisboa, e é muito bonito termos a oportunidade de a fazer novamente. Nefés é uma peça que se enquadra nesse mesmo género de criação de Masurca Fogo nota: peças que começou a criar por encomenda, na década de 80, em que se instala em residência artística numa cidade, juntamente com os seus bailarinos, e dessa estada e relação nasce um espectáculo, sendo a primeira destas obras Viktor, inspirada por Roma. É uma co-produção com Istambul. Tínhamos apresentado lá e tínhamos gostado muito da cidade. A criação faz parte desse processo, em que se cria uma relação especial, nascem amizades. É uma oportunidade de permitir ser influenciado por aquilo que vivemos ali, neste caso por Istambul, e ver o que nos acontece... Foi o mesmo em Lisboa. Uma experiência maravilhosa. Gostámos muito de fazer ambas as peças. Mas sobre cada uma delas, propriamente, é muito complicado falar. É para isso que faço os espectáculos, para não ter de falar deles. Têm de ser vistos.




foto: Ursula Kaufmann 



"Café Müller" é diferente dessas duas...

Café Müller é muito especial para mim. É uma criação antiga, e eu estou um pouco nesta peça nota: para além de todo o significado simbólico, Pina Bausch dança nesta obra. Aconteceu porque, quando ensaiávamos, eu estava presente e intervinha e auxiliava com o meu movimento... Os meus bailarinos sabem que eu quero dançar. Dominique Mercy que está com a coreógrafa desde a fundação da companhia, a Tanztheater Wuppertal, em 1973, por exemplo, sabe que quero muito dançar, e ele dizia que só faziam esta peça se eu entrasse nela. Só estariam em palco se eu estivesse também em palco. Quando decidimos fazer isto, ninguém fora da companhia sabia que ia ser assim. Foi uma surpresa quando, na primeira noite, eu estava lá, em palco. E desde aí tenho aparecido. É uma peça muito especial também porque tem uma cena, de um homem com as cadeiras o cenário é composto por muitas cadeiras, como num café, que era feita por Rolf Borzik, que era o cenógrafo e a pessoa com quem vivi. Foi com ele que fiz todos os meus primeiros trabalhos, e ele morreu em 1980... É uma obra que transporta todas estas memórias e tem um sentimento muito forte. Foi sempre uma peça muito especial...


O seu método de criação baseia-se muito na relação com os bailarinos, nas perguntas que lhes faz. Na peça "A Sagração da Primavera", de 1975 cujo filme vai ser apresentado neste festival, os bailarinos dançam até à exaustão, e a reacção do público, na altura, foi considerá-la chocante. De que forma é que a relação com os bailarinos mudou?
Temos muitos bailarinos, normalmente ficam durante muito tempo, como o Dominique, que ainda está comigo, e tenho outros mais novos. É uma mistura. Mas cada pessoa faz a diferença, porque cada uma tem uma personalidade diferente, uma sensibilidade particular. E a cada nova peça é interessante para mim trabalhar com estas qualidades distintas. Mas olhando as pessoas, no geral, é muito complicado. Com a música, com todos os elementos com que trabalhamos, entramos numa atmosfera... E penso que os bailarinos ficariam muito infelizes se apenas desenvolvêssemos metade, se não fossemos até ao fundo. Hoje oiço muitas vezes: "Porque não faz algo como A Sagração da Primavera?" Mas não faz sentido. Nós temos A Sagração... Apresentamos todos os anos. Não precisamos de outra Sagração...


Concorda que está mais alegre nas últimas peças, talvez desde "Água" de 2001, criada no Brasil? São mais luminosas, comparativamente com as anteriores? Agora até está mais comunicativa, dá entrevistas...
[Risos] Esse movimento existe por si, há mudanças que vão ocorrendo, não o tenho nas minhas mãos. A peça Água foi vista aqui já há alguns anos. Já está diferente. Neste momento, não sei para onde estou a ir. Estou a começar uma nova criação e não sei para onde vou, mas não é de modo algum como Água.


O que significa, para si, a expressão "dança-teatro"?
A primeira vez que pensei utilizar "dança-teatro" foi para ter a certeza de que não haveria um mal-entendido. Na companhia que existia antes, estava implícito que o estilo incluía bailado clássico. Eu queria garantir que as pessoas saberiam que não iam ver bailado clássico. Para mim, significa a possibilidade de trazer tudo para um conjunto, cantar, falar, dançar... O que quer que seja, tudo o que possa surgir na mente, as artes visuais... Pode incluir tudo. É por isso que quis encontrar um outro nome e me pareceu importante esta definição de "dança-teatro".



História de amor

O mundo de Pina Bausch desenha-se na dimensão humana do desejo, da solidão, do abandono, da ofensa, da violência e do sofrimento. Ou pelo menos era assim no início. Nas últimas peças, está mais leve.


Há humor nas relações entre as pessoas, mas que é, muitas vezes, levado ao ridículo. Há a expressão do medo. Há exaustão até ao extremo. Mas há também um mundo infantil, inocente, de sonho. Por vezes, é como se nada fizesse sentido, ou como se a imaginação fosse um espaço de liberdade, em que os adultos se comportam como crianças, onde não importa a figura que se faz.


Pina Bausch olha, a cada nova obra, para o mundo com esse olhar encantado da primeira vez. Mesmo por entre a densidade, a tensão, a brutalidade, há esperança. Há muitas Pina Bausch, nos quarenta anos de criação que comemora este ano, contados a partir de 1968, data de Fragment, com música de Béla Bartók, criada para o Folkwang Ballet.


Pina Bausch nasceu na cidade alemã de Solingen, em 1940. Uma das referências fundamentais da sua formação é o coreógrafo alemão Kurt Joos, autor da reconhecida obra The Green Table, peça máxima do expressionismo do pós-guerra.


Estudou em Nova Iorque, mas foi o regresso à Alemanha e o ter aceite o convite para dirigir a companhia de Wuppertal (que funda, em 1973, como Tanztheater Wuppertal Pina Bausch) que a lançou como nome de referência no mundo da dança.


As pessoas e a relação entre elas são um tema central do seu trabalho. No processo criativo, Pina Bausch constrói com os intérpretes uma relação de confiança. É assim que a obra nasce. Coloca-lhes perguntas, fazendo da sua natureza individual, das suas memórias e dos seus sentimentos a matéria do trabalho que cria.


A primeira vez que se apresentou nos Estados Unidos, na década de 80, a crítica da "The New Yorker" caracterizou a sua dança como "pornografia da dor", referindo-se "ao acto da brutalização e humilhação" tratado nas suas peças - são desta fase obras emblemáticas como A Sagração da Primavera, Café Müller, Kontakthof, Nelken ou Viktor, entre outras. Mas são estes mesmos ambientes, desencantados, de uma textura emocional e dramatúrgica intensas, cruéis, de um humor requintado e singular, por vezes difíceis de compreender - por recorrerem a uma estrutura fragmentária que faz uso de todas as artes disponíveis - que em parte fazem dela uma referência incontornável da história da dança.



Texto publicado na edição do Expresso de 25 de Abril de 2008



fonte: Expresso